segunda-feira, 29 de junho de 2009

A pergunta que o corpo faz


O CORPO COMO MÍDIA DE SEU TEMPO


A pergunta que o corpo faz


Helena Katz



Direto ao ponto: o que distingue um espetáculo de dança contemporânea é a pergunta que ele faz। Mais explicadinho: é preciso existir uma pergunta, mesmo que quem assista ao espetáculo não a identifique de imediato. Se, de fato, acontecer assim, essa tal pergunta pode ser tomada como um divisor de águas: a dança que indaga cabe dentro da nomeação de contemporânea, e a dança que não interroga seu público pertence a outra espécie. Este artigo discutirá o que exatamente significa essa pergunta.


Antes, quando se elegia a técnica empregada no trabalho para servir de critério de sua classificação, tudo parecia mais claro। Dança nas pontas? Fácil, trata-se de balé clássico. Dança com o corpo pintado de branco fazendo gestos bem lentos? Não há dúvida, trata-se de butô. Mas, se no lugar do tipo de treinamento, for indispensável atentar para o modo como a coreografia organizou as informações que vieram da técnica aprendida, tudo se complica. Deixa de ser suficiente, para efeitos de classificação da dança, se o corpo faz passos de balé ou rola pelo chão, se faz contrações ou acrobacia. O que passa a ser necessário é conseguir identificar como e/ou para que o corpo faz o que faz.


O que muda, basicamente, é o velho entendimento tácito de que o critério para distinguir a dança contemporânea repousa na compreensão de que ela decorre como efeito exclusivo do treinamento do corpo। Mais ou menos como se as marcas de uma técnica condicionassem também as suas possibilidades composicionais, cabendo ao corpo cumprir uma relação determinista entre técnica e estética da qual não pode escapar. Técnica como uma bula de instruções das coreografias em que pode resultar, uma receita de um destino estético.


Se isto não ocorre, apesar da técnica inscrever marcas que dirigem o desempenho do corpo, significa que os passos, os gestos, as seqüências, as frases, que tudo isso pode ser montado, remontado e desmontado de modos sempre novos, desmanchando aquelas expectativas que o hábito automatizou em nós। Esse desvinculamento entre técnica e estética se liga também à mudança no compromisso entre sala de aula e palco que veio ocorrendo ao longo da história da dança. Na época dos maîtres de balé do século XIX, cabia ao mesmo profissional criar a obra e montar uma pedagogia para sua execução. A sala de aula servia ao espetáculo. A especialização que resultou na separação entre professor e coreógrafo mexeu exatamente aí, consagrando a necessidade de uma técnica que viesse a capacitar o bailarino a dançar diferentes criações de coreógrafos distintos.


Todavia, como qualquer técnica carrega, sim, uma espécie de compromisso com certas famílias de possibilidades, isso leva muitos de nós a continuar a buscar identificá-la como índice do vínculo: se está dançando passos de balé e usando sapatilha de ponta, aquilo é balé clássico e ponto final। Mas qualquer um que tenha assistido à Karole Armitage ou às inúmeras criações de William Forsythe sabe que a argumentação não se aplica. Ambos usam estes ingredientes, mas o produto que deles resulta não cabe debaixo do guarda-chuva do balé clássico e sim do contemporâneo.


Por quê? Porque o que conta é o como e o para que aqueles passos e aquela sapatilha de ponta lá estão। E, nos dois casos – embora de maneiras inteiramente distintas – tanto os passos como a sapatilha mais instigam que distraem. Como que nos obrigam a mirá-los com atenção investigativa para entender o que se passa. Não nos fazem buscar a história que contam nem os sentimentos que expressam. Fazem de nós não mais espectadores, mas parceiros. Precisamos construir juntos a legenda do que se passa. A obra me pergunta e cabe a mim levantar hipóteses sobre ela.


Pronto। A obra fez uma pergunta. Não se deixou consumir numa fruição instantânea, não permitiu que o olhar escorresse sem compromisso maior do que o de passar de uma cena à outra somente confirmando nossas expectativas e impressões. A coreografia entregou alguns níveis de apreensão, mas indicou que há mais a ser desvendado. Ou seja, o modo como aqueles passos estão montados propõe algo a mais.


Quando você vê Cristina Moura sorteando papeizinhos, Marcela Levi entrando e saindo de sua roupa, Wagner Schwartz segurando uma pedra, Luis de Abreu nu e de sapato alto hasteando uma bandeira do Brasil esburacada, Micheline Torres apontando para o espaço que acabara de ocupar, Angelo Madureira dançando frevo sem a música e sem a seqüência habitual do frevo, parece que há mais a identificar do que aquilo que o olho capta de imediato। E talvez a discussão proposta por Gícia Amorim – em estágio mais avançado – e Adriana Banana – apenas iniciada – nos ajude a aprofundar a reflexão sobre a técnica na classificação da dança contemporânea, pois ambas demonstram como as idéias encarnadas na técnica de Cunningham (Gicia) ou de Trisha Brown (Adriana) podem abrigar propostas pessoais. Pode-se identificar no corpo de todos eles qual o treinamento, mas há algo lá, no que apresentam, que nos faz trabalhar junto. Por isso, a pergunta que fazem se distingue de um "decifra-me ou te devoro".


A dança contemporânea acontece num pacto entre palco e platéia। Não há emissor e receptor, mas um fluxo que atravessa todos os envolvidos com graus diferenciados de responsabilidade compartilhada. Mas cuidado! Não confunda pergunta com truque ou tique ou adivinhação, caso contrário você poderá dizer que o Momix, por exemplo, faz dança contemporânea – o que seria um erro lamentável.



Helena Katz
Crítica de dança do jornal O Estado de S.Paulo e professora de pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde coordena o Centro de Estudos em Dança.
Este texto pode ser encontrado no CD-ROM Rumos Itaú Cultural Dança 2003.